A HISTÓRIA DA ESPÉCIE NO DNA DE ESQUELETOS
ROBERTO KAZ
FOLHA DE SÃO PAULO 10/01/2016
Esqueletos
humanos contam histórias. A distribuição de ossadas e a idade delas revelam
onde e quando o Homo sapiens surgiu (na África, cerca de 200 mil anos atrás),
como se espalhou (primeiro pelo Oriente Médio, em seguida pela Ásia, e só
depois pela Europa) e que percalços teve de enfrentar (uma possível disputa com
o neandertal) até se estabelecer como a espécie dominante.
Até recentemente, a história contada por esqueletos
era de posse quase exclusiva da arqueologia. Mas estudos que analisam o DNA de
pessoas vivas ou de ossadas têm provocado uma revisão do que se sabe da nossa
história. A análise genética de uma pessoa, que custava cerca de US$ 1.000 em
2009, hoje é feita por um décimo do valor. O barateamento da técnica levou a um
aumento no banco de dados da humanidade –com resultados cada vez mais precisos.
Um exemplo recente foi publicado no final de outubro
na revista americana "Proceedings of the National Academy of
Sciences".
Geneticistas de três universidades americanas
analisaram o DNA das ossadas de duas crianças mortas há 11.500 anos no Alasca.
Descobriram que, embora tivessem sido enterradas juntas, não tinham a mesma mãe
ou avó. Eram geneticamente bastante distintas.
Naquele período de clima glacial, Ásia e América do
Norte estavam unidas por uma faixa de terra que se estendia pelo estreito de
Bering. Até pouco tempo atrás, acreditava-se que a colonização do continente
americano havia sido feita por um pequeno grupo, que avançara por essa faixa
aos poucos, de geração em geração, ao longo de milhares de anos.
Se o grupo fosse de fato pequeno, seus indivíduos
deveriam apresentar certa homogeneidade genética (quando uma população tem
poucas pessoas, espera-se que todas tenham algum parentesco). Mas dois fósseis
do mesmo período, enterrados ao mesmo tempo, apresentando genética tão díspar
podem indicar duas coisas. Em primeiro lugar, que essa população não era tão
pequena. Em segundo, que talvez fosse bastante variada.
ABORÍGENES
A ideia corrobora o que foi apontado por outros dois
estudos, publicados nas britânica "Nature" e na americana
"Science" há poucos meses. Coordenados por dois grupos independentes
–ambos com participação de pesquisadores brasileiros–, os estudos apontavam uma
estranha proximidade genética entre aborígenes da Oceania e das etnias
brasileiras suruí, karitana e xavante.
Segundo os cientistas, a semelhança parece propor que
a colonização da América tenha sido feita por dois grupos: um vindo do norte da
Ásia, atual Sibéria, e outro que, após deixar a África, passou um período no
sudeste da Ásia (de onde mais tarde migrou para a Oceania) –e de lá seguiu,
também pelo estreito de Bering, em direção ao novo continente.
A hipótese não é de todo nova. Há tempos a arqueologia
já observara uma semelhança física entre esqueletos da Oceania e da América do
Sul. A geneticista Tábita Hünemeier, professora da USP e coautora do estudo
publicado na "Nature", acredita que as duas ondas migratórias –de
povos vindos da Sibéria e do Sudeste Asiático– tenham sido quase concomitantes.
Ela recorda que o professor Walter Neves, arqueólogo e
antropólogo que coordenava o Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP,
"já falava de duas entradas populacionais faz tempo". A análise
genética veio tornar essa teoria mais sólida.
O DNA humano é formado por 27 mil genes que funcionam
como a despensa para uma cozinha. A receita para fazer duas células –dos
sistemas nervoso e digestivo, por exemplo– prescinde da ativação de genes
específicos para cada uma delas (assim como um pudim ou um bolo vão usar
ingredientes distintos da mesma despensa).
Mas a despensa genética também muda com o tempo, de
acordo com o que o ambiente determina como necessário para a sobrevivência de
uma espécie. Nós, humanos, ao contrário dos nossos antepassados, não temos rabo
(tornado desnecessário à medida que descemos das árvores para ter uma vida
sobre duas pernas).
Essa perda está marcada no DNA, em genes que foram
desativados –permanecendo, ainda assim, estocados no genoma.
No livro "The Making of the Fittest" (O
feitio do mais apto, sem tradução para o português), o cientista
norte-americano Sean B. Carroll escreve que "cada mudança evolutiva numa
espécie, da forma física ao metabolismo digestivo, nasce e é gravada no código
genético". Explica que a sequência de DNA de uma espécie é um "registro
completo do presente" mas também "uma janela" para o passado.
Por isso, a invasão da genética na arqueologia tem
crescido substancialmente na última década.
Em 2013, um estudo capitaneado pela geneticista Priya
Moorjani, então na Universidade Harvard, misturou evidências arqueológicas,
sociológicas, literárias –e, é claro, genéticas– para estimar uma data para o
surgimento do regime de castas na Índia.
Analisando o DNA de 571 indianos –todos vivos–,
Moorjani concluiu que houve uma profunda mistura genética entre etnias no
período que foi de 4.200 a.C. a 1.900 a.C. (a hipótese vem de cálculos
estatísticos a partir do DNA presente para estimar o código genético no
passado). A partir de então, a mistura foi bruscamente interrompida –sugerindo
a aparição de algum impeditivo externo.
No artigo, publicado no "The American Journal of
Human Genetics", Moorjani apontou que a mudança estava "espelhada em
antigos textos indianos".
Ela escreveu: "O Rigveda, o texto mais antigo da
Índia, tem seções compostas em momentos diferentes. As partes mais antigas não
mencionam o sistema de castas e chegam a sugerir que houve um período de
intercâmbio entre os grupos sociais". No texto, Moorjani frisa ainda que o
sistema de quatro classes –brâmanes, xátrias, vaixás e sudras– "é
mencionado apenas na parte do Rigveda possivelmente composta mais tarde".
A partir da análise genética, sua equipe pôde sugerir quando era esse
"mais tarde".
O estudo do DNA também foi usado para tentar entender
a origem do povo basco –pequena população dividida entre a Espanha e a França
cuja língua, o euskera, não tem conexão com qualquer outro idioma do mundo.
Em 2012, cientistas do Instituto Pasteur, da França,
analisaram o código genético de 908 moradores da região. Identificaram seis
mutações específicas –e ausentes em quem nasce no resto da Europa.
O geneticista Lluis Quintana-Murci, coordenador do
estudo, escreveu no "The American Journal of Human Genetics" que os
dados endossavam a hipótese de que os bascos descendam de caçadores que viviam
na Europa antes que uma onda migratória trouxesse a agricultura do Oriente
Médio. E lembrou que o "isolamento genético parcial dos bascos" tem
paralelo na sua cultura, já que seu idioma é "linguisticamente
isolado".
MIGRAÇÃO
A agricultura, por sinal, é um tema-chave nos estudos
que misturam arqueologia a genética. Sabe-se que a atividade surgiu no Oriente
Médio cerca de 10 mil anos atrás. Sabe-se, também, que ela se espalhou pela
Europa há 7.500 anos. O que não se sabe ao certo é se a prática foi difundida
pela palavra (por meio do intercâmbio cultural entre povos), ou pela migração
(através da conquista territorial por tribos vindas do Oriente Médio).
O assunto foi abordado em diversos estudos. Num deles,
publicado em 2009 na "Science", uma equipe formada por cientistas e
antropólogos da Universidade de Mainz, na Alemanha, analisou o DNA de 45
esqueletos –20 de caçadores e 25 de agricultores– que viveram na Europa Central
entre o período de 13.400 a.C. e 2.300 a.C..
Observaram um descompasso genético entre os
praticantes das duas atividades –fortalecendo a hipótese de migração.
"Nossos resultados", escreveu a geneticista Barbara Bramanti,
"indicam que a transição para a agricultura na Europa Central foi acompanhada
de um fluxo substancial de pessoas vindas de fora".
Dois dos maiores especialistas no campo que entrelaça
história e genética são os pesquisadores americanos Joseph Pickrell, do New
York Genome Center, e David Reich, da Universidade Harvard. Num artigo
publicado em 2014 na revista "Trends in Genetics", Pickrell e Reich
escreveram que o uso do DNA para o estudo das migrações é análogo, em termos de
importância, "à invenção, no século 17, do microscópio de luz como uma
janela para entender o mundo das células e micróbios".
Em entrevista à Folha por e-mail Joseph Pickrell disse
que, "no geral", historiadores e arqueólogos têm estado abertos à
reinterpretação genética da história.
"Claro, a visão que os geneticistas têm da
história é algo simplista, então haverá interpretações equivocadas se não
houver colaboração com outras disciplinas, o que tem acontecido." Ele
acredita que o uso de DNA ainda nos ajudará a entender em detalhes a origem de
certas línguas, a saída do Homo sapiens da África e, claro, a chegada dele ao
continente americano.
ROBERTO KAZ,
33, jornalista, é autor de "O Livro dos Bichos", a sair em março pela
Companhia das Letras.